Fibrose Cística no SUS: Diagnóstico Precoce, Tratamentos Avançados e Acompanhamento Multidisciplinar
Entenda a fibrose cística, como o Teste do Pezinho é crucial para o diagnóstico e como o SUS oferece tratamento completo, incluindo os novos moduladores da proteína CFTR e acompanhamento em Centros de Referência.
5/14/20259 min read


Fibrose Cística: Medicamentos e Acompanhamento Especializado pelo SUS
A fibrose cística (FC), também conhecida como mucoviscidose ou doença do beijo salgado, é uma doença genética rara, crônica e progressiva que afeta principalmente os sistemas respiratório e digestivo. Ela é causada por mutações no gene CFTR (Regulador da Condutância Transmembrana da Fibrose Cística), que levam à produção de secreções mais espessas e pegajosas do que o normal em diversos órgãos, como pulmões, pâncreas, fígado e intestino.
No Brasil, estima-se que a incidência seja de aproximadamente 1 a cada 10.000 nascidos vivos, variando conforme a região e a etnia. Apesar de ser uma condição complexa e que exige cuidados contínuos, os avanços no diagnóstico precoce – principalmente através do Teste do Pezinho – e nas terapias disponíveis têm transformado significativamente o prognóstico e a qualidade de vida dos pacientes. O Sistema Único de Saúde (SUS) desempenha um papel crucial, oferecendo desde o diagnóstico neonatal até tratamentos altamente especializados e medicamentos de alto custo, incluindo os recentes moduladores da proteína CFTR.
Este guia completo abordará o que é a fibrose cística, seus sintomas, como o SUS realiza o diagnóstico, quais são os tratamentos e medicamentos disponíveis gratuitamente (incluindo os do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica - CEAF), a importância do acompanhamento multidisciplinar nos Centros de Referência e como acessar esses cuidados essenciais através da rede pública de saúde.
O que é Fibrose Cística e Como Ela Afeta o Corpo?
A fibrose cística é uma doença hereditária autossômica recessiva. Isso significa que para uma pessoa nascer com FC, ela precisa herdar duas cópias do gene CFTR defeituoso, uma do pai e uma da mãe. Se a pessoa herda apenas uma cópia defeituosa, ela é considerada portadora do gene, mas geralmente não manifesta a doença, embora possa transmiti-lo aos seus filhos.
O gene CFTR é responsável por produzir uma proteína que funciona como um canal nas superfícies celulares, controlando o movimento de sal (cloreto) e água para dentro e fora das células. Quando essa proteína está ausente ou não funciona corretamente devido a mutações genéticas, o transporte de sal e água é alterado. Isso resulta na produção de muco e outras secreções (como o suor e sucos digestivos) anormalmente espessos e pegajosos.
Essas secreções viscosas podem causar diversos problemas:
Sistema Respiratório: O muco espesso se acumula nas vias aéreas, dificultando a respiração, obstruindo os brônquios e tornando os pulmões mais suscetíveis a infecções bacterianas crônicas e inflamação. Com o tempo, isso pode levar a danos pulmonares progressivos, como bronquiectasias (dilatação permanente dos brônquios) e insuficiência respiratória.
Sistema Digestivo:
Pâncreas: O muco espesso pode bloquear os ductos pancreáticos, impedindo que as enzimas digestivas cheguem ao intestino para digerir os alimentos, especialmente gorduras e proteínas. Isso causa má absorção de nutrientes, diarreia crônica (esteatorreia – fezes gordurosas e volumosas), desnutrição e dificuldade de ganho de peso. Com o tempo, o pâncreas também pode ser danificado, levando ao desenvolvimento de diabetes relacionado à fibrose cística (DRFC).
Intestino: Pode ocorrer obstrução intestinal, especialmente em recém-nascidos (íleo meconial).
Fígado: O bloqueio dos ductos biliares pode levar a doença hepática e cirrose em alguns pacientes.
Glândulas Sudoríparas: Produzem suor com concentrações muito elevadas de sal (cloreto de sódio), o que dá à pele um sabor salgado característico e é a base para o principal teste diagnóstico (teste do suor).
Sistema Reprodutor: A maioria dos homens com FC é infértil devido à ausência ou obstrução do canal deferente. As mulheres podem ter fertilidade reduzida devido ao muco cervical espesso.
É importante notar que a gravidade e as manifestações da fibrose cística podem variar muito de pessoa para pessoa, dependendo das mutações genéticas específicas e de outros fatores.
Sintomas e Diagnóstico da Fibrose Cística no SUS
Os sintomas da fibrose cística podem variar em tipo e gravidade, e podem surgir em diferentes idades, desde o nascimento até a vida adulta, embora a maioria dos casos seja diagnosticada na primeira infância.
Principais Sintomas
Respiratórios:
Tosse persistente, muitas vezes com catarro espesso e difícil de expectorar.
Infecções pulmonares frequentes (pneumonias, bronquites de repetição).
Chiado no peito (sibilância) e falta de ar, mesmo com pouco esforço.
Sinusite crônica e pólipos nasais.
Digestivos:
Dificuldade de ganhar peso e desnutrição, apesar de bom apetite (devido à má absorção de nutrientes).
Fezes volumosas, gordurosas (esteatorreia) e com odor fétido.
Dor abdominal e distensão (inchaço).
Íleo meconial em recém-nascidos (obstrução intestinal pelo mecônio espesso).
Prolapso retal (exteriorização de parte do reto).
Diabetes relacionado à fibrose cística (DRFC) em adolescentes e adultos.
Outros:
Suor excessivamente salgado (pais podem notar ao beijar a criança).
Baqueteamento digital (alargamento das pontas dos dedos das mãos e pés).
Infertilidade masculina.
Diagnóstico pelo SUS
O diagnóstico precoce é crucial para iniciar o tratamento o mais rápido possível e melhorar o prognóstico. O SUS oferece um programa de triagem neonatal e exames confirmatórios:
Triagem Neonatal (Teste do Pezinho): A fibrose cística é uma das doenças detectadas pelo Teste do Pezinho, realizado gratuitamente em recém-nascidos entre o 3º e o 5º dia de vida. O teste mede os níveis de uma substância chamada Tripsina Imunorreativa (IRT) no sangue. Níveis elevados de IRT são um indicativo de possível FC e requerem exames confirmatórios.
Teste do Suor (Ionotest ou Condutividade): É o padrão-ouro para confirmar o diagnóstico de fibrose cística. Ele mede a quantidade de cloreto no suor. Um resultado positivo (alta concentração de cloreto) confirma o diagnóstico na maioria dos casos. O SUS disponibiliza o teste do suor em Centros de Referência ou laboratórios credenciados.
Teste Genético: A análise do gene CFTR pode identificar as mutações específicas causadoras da doença. É útil para confirmar o diagnóstico em casos duvidosos, para aconselhamento genético familiar e, cada vez mais, para orientar terapias específicas (moduladores CFTR). O SUS tem ampliado o acesso a testes genéticos para FC.
Outros Exames: Podem incluir exames de função pulmonar (espirometria), radiografia e tomografia de tórax, exames de fezes para avaliar a má absorção de gordura, e exames para avaliar a função pancreática e hepática.
Se houver suspeita de fibrose cística (mesmo com Teste do Pezinho normal, pois podem ocorrer raros falsos-negativos, ou em crianças mais velhas e adultos com sintomas sugestivos), o médico da UBS deve encaminhar o paciente para um Centro de Referência em Fibrose Cística para investigação diagnóstica completa.
Tratamento da Fibrose Cística no SUS: Uma Abordagem Multidisciplinar
O tratamento da fibrose cística é complexo, contínuo e requer uma abordagem multidisciplinar, idealmente conduzida em Centros de Referência especializados. O SUS garante o acesso a esses centros e a uma ampla gama de terapias e medicamentos, muitos deles de alto custo.
Os principais pilares do tratamento no SUS incluem:
1. Cuidados Respiratórios
Fisioterapia Respiratória: É fundamental e deve ser realizada diariamente. Inclui técnicas para ajudar a limpar o muco espesso das vias aéreas (como drenagem postural, percussão/vibração torácica, ciclo ativo da respiração, uso de dispositivos como Flutter ou Shaker). A equipe de fisioterapia do Centro de Referência orienta e treina o paciente e a família.
Medicamentos Inalatórios:
Broncodilatadores (ex: Salbutamol): Para abrir as vias aéreas antes da fisioterapia ou para aliviar o broncoespasmo.
Soluções Salina Hipertônica: Inalada para ajudar a fluidificar o muco e facilitar sua remoção.
Dornase Alfa (Pulmozyme®): Uma enzima que quebra o DNA presente no muco espesso, tornando-o mais fluido e fácil de expectorar. É um medicamento de alto custo fornecido pelo SUS mediante critérios específicos.
Antibióticos Inalatórios (ex: Tobramicina, Colistina): Usados para tratar ou suprimir infecções bacterianas crônicas nos pulmões, especialmente por Pseudomonas aeruginosa.
Antibióticos Orais ou Endovenosos: Para tratar exacerbações pulmonares (piora aguda dos sintomas respiratórios com infecção).
Anti-inflamatórios: Como Azitromicina (em doses baixas e uso prolongado) ou Ibuprofeno (em altas doses, sob monitoramento), podem ser usados em alguns casos para reduzir a inflamação pulmonar.
2. Cuidados Nutricionais e Digestivos
Terapia de Reposição Enzimática Pancreática (TREP): Essencial para a maioria dos pacientes com insuficiência pancreática. Consiste na administração de cápsulas contendo enzimas pancreáticas (lipase, amilase, protease) antes de cada refeição ou lanche que contenha gordura ou proteína. Essas enzimas ajudam na digestão e absorção dos nutrientes. O SUS fornece gratuitamente as enzimas pancreáticas.
Dieta Hipercalórica e Hiperproteica: Devido à má absorção e ao gasto energético aumentado, os pacientes com FC geralmente precisam de uma dieta rica em calorias e proteínas. Suplementos nutricionais podem ser necessários.
Suplementação de Vitaminas Lipossolúveis (A, D, E, K): A má absorção de gorduras também afeta a absorção dessas vitaminas, que precisam ser repostas.
Manejo do Diabetes Relacionado à Fibrose Cística (DRFC): Com insulina e acompanhamento endocrinológico.
3. Moduladores da Proteína CFTR
Esta é a mais recente e revolucionária classe de medicamentos para fibrose cística. Diferentemente dos tratamentos que apenas aliviam os sintomas, os moduladores CFTR atuam diretamente na causa da doença, corrigindo ou melhorando a função da proteína CFTR defeituosa. Existem diferentes tipos de moduladores, indicados para pacientes com mutações genéticas específicas.
O SUS tem incorporado progressivamente esses medicamentos de altíssimo custo, como:
Ivacaftor (Kalydeco®): Para pacientes com certas mutações de "gating".
Lumacaftor/Ivacaftor (Orkambi®), Tezacaftor/Ivacaftor (Symdeko®): Para pacientes homozigotos para a mutação F508del.
Elexacaftor/Tezacaftor/Ivacaftor (Trikafta®/Kaftrio®): Uma combinação tripla altamente eficaz, indicada para um grupo maior de pacientes, incluindo aqueles com pelo menos uma mutação F508del. Esta terapia representa um marco no tratamento da FC e foi incorporada ao SUS em 2023/2024, com dispensação iniciada em meados de 2024 para pacientes elegíveis conforme o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do Ministério da Saúde.
O acesso a esses moduladores no SUS requer avaliação em Centro de Referência, confirmação da mutação genética elegível e seguimento rigoroso dos critérios estabelecidos no PCDT.
4. Outros Cuidados e Acompanhamento
Atividade Física Regular: Ajuda a manter a função pulmonar, a força muscular e o bem-estar geral.
Acompanhamento Psicológico e Social: Para o paciente e a família, ajudando a lidar com os desafios de uma doença crônica.
Vacinação Completa: Além das vacinas de rotina, são essenciais as vacinas contra gripe (anual), pneumonia (pneumocócica), Haemophilus influenzae tipo b, e outras conforme orientação médica.
Centros de Referência e Acesso ao Tratamento no SUS
O tratamento da fibrose cística no SUS é centralizado em Centros de Referência (CRFC) ou Serviços de Atenção Especializada. Esses centros contam com equipes multidisciplinares experientes, incluindo pneumologistas, gastroenterologistas, nutricionistas, fisioterapeutas, enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos.
O fluxo de acesso geralmente é:
Suspeita ou Triagem Positiva: A partir do Teste do Pezinho alterado ou da suspeita clínica na UBS, o paciente é encaminhado ao Centro de Referência.
Confirmação Diagnóstica: No CRFC, são realizados os exames confirmatórios (teste do suor, teste genético).
Plano Terapêutico Individualizado: A equipe multidisciplinar elabora um plano de tratamento completo e individualizado.
Dispensação de Medicamentos: Os medicamentos, incluindo os de alto custo como Dornase Alfa e os moduladores CFTR, são fornecidos pelo Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF) do SUS, mediante solicitação e laudo médico do especialista do CRFC, seguindo os critérios dos PCDTs. As enzimas pancreáticas e outros medicamentos básicos também são fornecidos.
Acompanhamento Regular: Consultas periódicas no CRFC para monitoramento da saúde, ajuste de tratamentos, exames de rotina e suporte contínuo.
Esperança e Qualidade de Vida com o Apoio do SUS
A fibrose cística é uma jornada desafiadora, mas os avanços no diagnóstico e, principalmente, no tratamento, têm trazido uma nova perspectiva de esperança e qualidade de vida para os pacientes. O Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil se destaca por oferecer um cuidado abrangente e gratuito, desde a triagem neonatal até terapias inovadoras e de alto custo, como os moduladores da proteína CFTR.
O diagnóstico precoce através do Teste do Pezinho, o acompanhamento em Centros de Referência com equipes multidisciplinares e o acesso garantido a medicamentos essenciais são conquistas fundamentais. Se você tem um filho com diagnóstico de FC ou se você é um adulto com a condição, saiba que o SUS oferece o suporte necessário para o manejo da doença. Siga as orientações da equipe de saúde, mantenha a adesão ao tratamento e participe ativamente dos seus cuidados. A ciência avança, e o SUS acompanha esses avanços para proporcionar o melhor cuidado possível.
Referências
1. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Fibrose Cística (Relatório de Recomendação - Consulta Pública nº 03/2024). Disponível em: PCDT Fibrose Cística 2024 (Consulta Pública)
2. Ministério da Saúde. Conitec. Pacientes com fibrose cística contam com protocolo atualizado no SUS (Dezembro 2021). Disponível em: Conitec Notícia PCDT FC 2021
3. Unidos pela Vida - Instituto Brasileiro de Atenção à Fibrose Cística. Trikafta no SUS. Disponível em: Unidos pela Vida - Trikafta no SUS
4. Associação Brasileira de Assistência à Mucoviscidose (ABRAM). O que é Fibrose Cística?
5. Ministério da Saúde. Teste do Pezinho.
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